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Questionar a cultura

por Marquês, em 13.12.13
Esta semana apetece-me questionar a existência de tudo! Estou a brincar, apenas a existência deste blogue. Vou explicar: fui entrevistado para um trabalho da universidade. Muito simples, queriam um bloguer sem sucesso e vieram ter comigo. Apreciei. E uma das perguntas pedia para falar dos textos que mais tinha gostado de escrever. O que me dá mais gozo escrever? Estórias. Reais ou inventadas mas estórias. Gosto de narrar uma estória à minha maneira. Se for uma estória antiga e rural, onde fique bem colocar vocábulo que aprendi quando era um petiz numa família de gente ligada à terra, então sinto-me mesmo bem.

Há cerca de dois anos, noutro blogue, escrevi um texto sobre cultura onde explorava a cultura enquanto palavra. Todas pessoas têm cultura, embora de áreas diferentes ou de vertentes diferentes. Cultura pode ser instrução ou estudo, como cultura ligada ao mundo das artes, por exemplo. Mas cultura também pode ser lavoura, pode ter a ver com a terra e com produtos naturais, cultivo. É simples.

E nesse texto referi a minha avó para desmistificar um pouco a cultura. A minha avó é a melhor pessoa do mundo. Quando lá vou almoçar ou jantar, descasca a fruta para eu comer. Em casa nunca como fruta, lá marcha sempre um pero ou uma maçã. Contudo, é também uma pessoa muito culta. Já na casa dos 70, sabe ler por esforço próprio e sempre trabalhou no campo. Tem essa cultura. O resto, adquire nas revistas e nos livros que os filhos e netos deixam lá em casa. Nunca foi ao teatro, nunca foi ao cinema, nunca leu Marx ou Descartes mas sabe tudo sobre plantar batatas, sobre a monda do arroz, sobre o cultivo de morangos ou laranjas. Vendo bem, tem muito mais cultura que eu, e eu tenho um papel que diz "licenciado". E sou desempregado! O que é cultura afinal? Para que serve? Vou comer uma fatia de pão e beber um copo de vinho. Pão cozido pela avó no forno a lenha e vinho destilado pelo avô na adega. Até nisso sou um leigo, como e bebo e não sei fazer nada!

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O final do Verão

por Marquês, em 20.09.12


Lá andava o rapaz a correr e a pular atrás do avô. Às vezes ajudava, com as mãos pequenas e um minúsculo sacho. Fazia festas na terra mas para ele era como se estivesse a cavar metade da horta com cada cavadela. Outras vezes, na sua maioria, claro está, só incomodava. Tropeçava no próprio chão e, volta e meia, lá ia o joelho contra uma pedra e as pobres calças, já remendadas, teriam de passar novamente pelas mãos habilidosas da avó.

O final do Verão era marcado, todos os anos, pela mesma imagem. Vendo bem, é das melhores e mais presentes recordações que lhe restam.

Acordava, com o Sol já forte, apesar de pouco passarem das oito da manhã. Espreitava pela janela do seu quarto e lá ia o burro, com um velhote às costas e umas cestas. Nas cestas ia o trabalho do ano, ou pelo menos uma parte, em direcção à vila onde esperava arrecadar umas moedas e trocar o resto por sementes. O produto da horta alimentava a casa mas só estas visitas à vila podiam pagar o gasóleo do tractor ou os medicamentos para as dores do corpo, pobre coluna sempre a queixar-se e um andar coxo ao qual se tinha habituado ainda em boa idade, eram o suficiente para acompanhar o pão com doce pela manhã. Uma chávena de café, uma fatia do pão amassado pela esposa, um bocado de doce de tomate ou de compota, consoante a sorte, e dois comprimidos que um médico, na altura português, lhe receitou para poder trabalhar mais uns anos. Passava-se a semana e todos os dias a mesa era posta para um a mais. À hora da ceia todos olhavam para o canto da mesa, ainda órfão do patriarca da família. Do seu lado a velhota suspirava e ansiava pelo seu regresso. E que desta vez trouxesse alguma surpresa ou boas novas da vila. Por vezes ficava a saber que um amigo de infância tinha falecido ou que o filho do Zé do talho estava emigrado para França ou que o filho do carteiro Manuel tinha casado com uma moça da cidade e se tinha ido embora. A malta jovem queria ir embora, recusavam pegar na enxada. Que futuro dava uma leira de batatas ou uma fileira de macieiras? Estava na moda ir para o estrangeiro ou fugir para as cidades. Dava dinheiro trabalhar num escritório pequeno sem ver a luz do dia, preencher papéis, estudar até não poder mais. Ou então ir para a hotelaria. Muitos diziam fazer lá bom dinheiro. Mas o pequeno rapaz todos os dias esperava junto ao caminho com o seu sacho na mão. “Ainda não é hoje que o avô chega”, pensava ele quando o Sol desaparecia no horizonte. Até que chegava o dia. Ao longe, normalmente pelo final da tarde, surgia uma silhueta ao fundo da estrada. Estrada de terra, trânsito inexistente. Lá vinha o homem com um pau às costas, uma cesta na ponta do pau e um par de botas ao pescoço, novas, na mão trazia um cacho de bananas. Ao entrar em casa piscava o olho ao pequeno, escondia as bananas e dava um beijo na esposa. Mas a resposta não se fazia esperar, “Pronto, vendeste o burro e agora quem vai lavrar a terra? E para que precisas das botas? Ainda o ano passado compraste umas novas! Meu Deus, que vai ser de nós agora sem o animal. Conseguiste ao menos comprar sementes?”. Era então que puxava das bananas. Ali na vizinhança não havia bananas, e ele gostava, e a esposa ainda gostava mais. A discussão acabava logo, na semana seguinte já tinham novo burro, comprado por metade do preço a um amigo ali de perto.

A vida continuava. E, inevitavelmente, o final do Verão era anunciado pela viagem do burro a caminho da vila. Na chegada, durante anos assim foi, lá vinha o velhote com um pau às costas, um par de botas novas ao pescoço e um cacho de bananas na mão.

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